domingo, 25 de julho de 2010

Teologia da Libertação e Teologia da Missão Integral: Duas Teologias Contextuais Latino-Americanas

Segue abaixo o que consegui recuperar da minha fala no encontro "TRANSFORMANDO A MISSÃO:JUSTIÇA – ESPIRITUALIDADE – CIDADANIA, realizado em Salvador-BA, de 7 a 10 de outubro de 2009. Mantenho a linguagem informal, propria de apresentação oral sem intuito de publicação. Partilho-a aqui, para contemplar os pedidos recebidos de copia daquela fala.

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Antes de mais nada, gostaria de registrar a alegria de estar participando desse evento e ter a honra de fazer isso na presença de duas pessoas a quem muito admiro, e que tem servido de inspiração para todos nós. Primeiramente, o Pe. José Comblim, que além de ser o teólogo que é, pela sua forma de viver nos inspira e desafia profundamente. Pe. Comblim, aqueles que dizem que a Teologia da Libertação morreu não sabem o que falam. Olha pra isso aqui! Esse encontro com tanta gente jovem, representando tantas igrejas diferentes, não existiria sem a teologia da libertação. Por outro lado, acho que nem mesmo os primeiros teólogos da libertação imaginaram os desdobramentos e possibilidades existentes naquilo que começaram. Creio que jamais pensaram que "crentes" e pentecostais iriam absorver seus ensinos um dia. Ouvi muita gente nos EUA repetindo o mantra de que a teologia da libertação já passou. Lembrei-me do Gustavo Gutierrez dizendo que ela pode até mudar de nome, mas enquanto existir pobreza, exploração e injustiça na terra, haverá necessidade de alguma forma de teologia da libertação. Obrigado por sua perseverança e obrigado por estar aqui conosco, contribuindo de forma especial com as discussões desse encontro.


A outra figura a que me refiro é o Pr. René Padilla. Tive a oportunidade de ler grande parte de seus escritos. Como eles nos têm inspirado! Acho que a maioria de nós aqui poderia contar uma história semelhante à que o Pr. Wellington Santos nos contou na primeira noite, mesmo sem o brilhantismo da sua forma única de se comunicar. A nossa geração, que cresceu durante o sistema opressor da ditadura militar e se converteu nesse período, aprendeu um evangelho que se preocupava só com a alma e com a eternidade. Na entrada da igreja onde cresci estava escrito: onde passarás a eternidade? Não tivemos instruções para lidar com os problemas sociais que nos cercavam. Tínhamos que andar pelo tato e, às vezes, como Wellington colocou, com as consciências cheias de culpa ou ao menos com grandes dúvidas. Assim, por exemplo, me sentia, quando me envolvi pela primeira vez com o movimento estudantil, na época das Diretas Já. De um lado via colegas meus sendo acusados de comunismo e sendo perseguidos por isso; do outro, como um cristão batista, temia o fato de estar me aproximando muito daqueles "comunistas". Sendo oriundo de uma família pobre, aos 18 anos já  estava no mercado de trabalho, onde participava ativamente do movimento dos trabalhadores e das greves daquele tempo. No entanto, nada disso podia ser refletido e processado no contexto da minha fé evangélica, uma vez que essas coisas eram consideradas pecado, sem qualquer espaço para discussão, nas igrejas onde fui criado.


Em 1989, já no seminário, ao participar da campanha pró-Lula, mencionada por Wellington aqui, a coisa foi pior. Fui ameaçado de expulsão pelo seminário que estudava, acusado, entre outras coisas, de comunismo. Ouvia frequentemente que o seminário, não eram lugar para gente como eu. Nesse contexto, pastor René, onde teologia da libertação era um tremendo palavrão e não poderia ser nem discutida , fui apresentado à teologia da missão integral, e em particular aos seus escritos, aos escritos do Samuel Escobar e aos escritos do saudoso Orlando Costas.  O senhor não tem idéia do quão alentador foi para mim e para muitos da minha geração poder ter acesso ao que o senhor e seus companheiros estavam escrevendo. Esses escritos nos resgataram, nos abriram um novo horizonte, nos mostraram novas possibilidades de caminhar. Foi inclusive esse contato com a Teologia da Missão Integral que posteriormente me conduziu a um contato maior com a Teologia da Libertação. Muito obrigado, Pe. Comblim. Muito obrigado, Pr. René Padilla, pela caminhada, pela coragem, pela luta, pela vida de vocês. E que honra poder participar hoje, alguns anos mais tarde, desse evento com vocês dois.


Tendo dito isso, preciso dizer para todos os que de alguma forma se identificam com os sentimentos que expresso de gratidão e de identificação com esses legados que a melhor forma de preservarmos e alimentarmos um legado teológico,  não é transformando-o numa verdadeira vaca sagrada da nossa vida cristã, mas é engajando-o num diálogo crítico, que reconheça e valorize o trabalho desses homens e mulheres que nos antecedem na caminhada crist, mas que ao mesmo tempo construa a partir de um novo lugar histórico, que é a realidade contextual onde cada um de nós se encontra. Não pode existir homenagem maior que essa, nem amor maior a um legado que esse.


Ontem, alguém perguntou ao Pr. Ricardo Gondim, onde ficam os clássicos, qual o lugar deles para nós, quando levantamos tantos questionamentos, quando tocamos em tantas vacas sagradas. Ele sabiamente perguntou de volta: quais dos clássicos? Eu ousaria dizer que há um lugar de reverência no nosso teologar para com todos os clássicos da teologia cristã, e que quando os engajamos criticamente não os estamos desprezando. Pelo contrário, estamos mantendo-os vivos e estamos reconhecendo o seu valor. Matam-nos os que os cristalizam e os repetem cegamente, sem contribuir em nada com a construção da história que os sucede e só pode continuar na medida em que nós temos a coragem de os engajar a partir de nossa própria realidade, com nossas próprias questões e com nossas novas elaborações. Isso vale para a forma como olhamos os grandes teólogos e teólogas do passado, como Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino, Lutero, Calvino, ou alguns dos teólogos anabatistas. Isso vale, por outro lado, para os grandes eventos históricos do passado mais distante, como a Reforma Protestante. E isso também vale para eventos mais recentes na história da igreja, que incluem o Congresso de Lausanne, em 1974, que ao meu ver tem sido indevidamente transformado num Concílio. As conclusões expressas em seu documento final, o Pacto de Lausanne, ao invés de serem consideradas historicamente--o que reconheceria seu lugar e contribuição única na história recente do protestantismo no mundo--tem se transformado quase que numa declaração definitiva, usada para medir quem é da missão integral e quem não é. Tem gente que diz:  "Esse pessoal da FTL no Nordeste do Brasil, lidando com questões de gênero e sexualidade, falando em ecumenismo e diálogo interreligioso, e outras coisas mais...sei não... isso não está no Pacto de Lausanne; está fora das balizas da . missão integral." Que serviço se presta com esse tipo de atitude a um legado tão rico e precioso?

Pois bem, o tema desse congresso é “Transformando a Missão”. A inspiração desse tema vem, entre outras coisas, do livro clássico do David Bosch, Transforming Mission, traduzido para o português como “Missão Transformadora”. Tal tradução não faz jus ao título original, em inglês, pois a expressão “transforming mission” diz respeito não apenas a uma missão que transforma algo, mas que também se transforma, que é transformada na medida em que avança. Nesse livro que hoje é um clássico da missiologia, Bosch está tanto preocupado em discernir as melhores maneiras como a igreja cristã pode exercer seu papel transformador no mundo, quanto mostrar de que formas ela é e tem sido transformada pelo encontro com novos contextos, valores e perspectivas culturais. Eu diria que é dentro dessa perspectiva que admite que a missão está em contínuo exercício de transformação para dentro e para fora que estamos reunidos aqui. Alguns pressupostos por trás disso são os seguintes:

1) Todas as nossas percepções e todas as nossas construções são percepções e construções em perspectiva. É parte da natureza humana a nossa limitação temporal e espacial. Então, ao contrário do que muitos fundamentalistas tentam dizer, o problema quando levantamos questões, quando relemos e reinterpretamos a Bíblia, e quando a mantemos aberta para tais possibilidades, não está necessariamente no fato de questionarmos a revelação divina, mas no de admitirmos a parcialidade e as limitações da nossa própria capacidade de perceber e entender a revelação. Quando nos damos conta disso, somos levados a nos posicionar de forma mais aberta e humilde, diante do sagrado.

2) Entendemos que todo trabalho humano na face da terra produz transformação. Isso, da mesma forma está na base da nossa compreensão do humano. Isso é virtude e defeito nosso, como seres humanos. Mas sendo um ou outro é inerente ao que somos. Somos seres incompletos. Como nos lembrou Rubem Alves num de seus livros mais clássicos, ao contrário dos outros animais, não possuímos tudo o que precisamos imbutidos em nossos próprios corpos. Por nossas limitações, precisamos da linguagem para nos comunicar uns com os outros, sendo assim animais simbólicos. Damos sentido às nossas ações. Temos uma sede de sentido, de significado, em tudo o que fazemos. Por isso, construímos a história, sendo eternos nômades, se não no sentido geográfico, ao menos tendo almas nômades, que existem em constante inquietude. Soube ontem que o Pe. Comblim, aos 87 anos, está de mudança, para iniciar mais um trabalho, para aprender com as comunidades ribeirinhas.


Transformação é parte inerente de quem somos, reconheçamos isso ou não. Isso vale até mesmo para fundamentalistas que pensam tudo em termos de conservação, de manutenção da verdade pura e única. Eles também mudam, ainda que não o admitam. Alguns fundamentalistas brasileiros seriam um escândalo para a percepção de mundo de alguns fundamentalistas americanos, e vice-versa. Muitas das nossas igrejas mais conservadoras no Brasil ficariam escandalizadas se soubessem que o dinheiro das ofertas missionárias que vinha dos Estados Unidos financiar a evangelização do Brasil resultava do trabalho nas plantações de fumo, ou que hoje em dia algumas dessas ofertas podem estar vindo de fabricantes de armas. Muitos cristãos um dia defenderam a escravidão e a segregação racial justificando suas posições com base na interpretação que davam às escrituras na época. Hoje, mesmo as teologias mais conservadoras entendem essas coisas como um pecado grave. Aqui no Brasil, muitos pastores defenderam a ordem política existente durante os 21 anos de ditadura, usando leituras e versículos da Bíblia para isso. Hoje alguns têm até vergonha de pensar que assim procederam. Queiramos ou não, somos seres em transformação.


3) Quando partimos para uma análise do cristianismo, nos damos conta de que entre as grandes religiões, talvez não há qualquer outra com mais capacidade de auto-transformação e de sincretização no encontro com novas realidades do que a religião cristã. Kwame Bediako, um missiologista de Gana, tem usado o termo “a tradutibilidade do evangelho” para se referir às várias mudanças históricas no epicentro do cristianismo. Se tomarmos especialmente as religiões monoteístas, nenhuma chegou nem perto de passar por transformações mais radicais na sua compreensão de mundo do que o Cristianismo, que começou na palestina, depois teve parte da sua formação no norte da Africa, depois se tornou europeu , posteriormente norte-americano, e que ultimamente tem se movido de novo na direção do sul, tornando-se mais latino-americano, asiático e africano. Em cada fase dessas, o cristianismo assumiu uma face diferente. Na visão do Bediako e de outros missiólogos, estamos vivenciando o processo dessa última transição na direção do sul. Tal transição  mudará a face do cristianismo mais uma vez nos próximos anos, com conseqüências que ainda estamos por ver. Ou seja, se há uma religião que sabe lidar com a realidade da transformação é a cristã.


4) Do ponto de vista da nossa localização histórico-teológica, tanto a teologia da libertação quanto a teologia da missão integral estão no ramo das chamadas teologias contextuais. Ambas se opuseram ao fato de que por alguns séculos as teologias produzidas na Europa e nos Estados Unidos se afirmaram como “teologia”, pura e simplesmente, alegando a universalidade de suas construções teológicas, tratadas basicamente como definitivas. Há alguns anos, na maior parte dos nossos seminários, estudar teologia era um exercício basicamente de memorização. Sabia mais quem era mais capaz de citar teólogos europeus e norte-americanos. As discussões eram decididas com uma citação de algum grande teologo. Uma das pessoas que mais contribuíram para nos libertar dessa falácia foi Richard Shaull, missionário norte-americano que ensinava no Seminário Presbiteriano de Campinas. Apesar de ter apresentado pela primeira vez teólogos importantes como Dietrich Bonhoeffer e Paul Lehmann aos seus estudantes brasileiros, dizia, nos seus exames: "eu não quero saber o que Tillich disse, ou o que Lehmann disse. Eu quero saber o que você pensa, e que sentido pode fazer alguma coisa que eles disseram para a realidade brasileira, para os problemas que vocês estão enfrentando aqui na realidade urbana e industrial de Campinas." Aí ele dizia que se eles quisessem mesmo aprender teologia deveriam ir trabalhar nos pátios das fábricas, se filiar aos sindicatos, participar da vida do povo. Dali nasceram os primeiros experimentos brasileiros dentro dos moldes do que viriam a ser as comunidades eclesiais de base a partir da década de sessenta.


Tanto a TL como a Teologia da Missão Integral surgiram da compreensão de que a revelação de Deus se dá no contexto da história; que a interpretação das Escrituras não pode acontecer de forma abstrata e que as ferramentas de interpretação não são universais; que a forma do Evangelho se manifestar na América Latina não é a mesma que se deu no contexto norte-americano ou europeu, e que, portanto, suas interpretações bíblico-teológicas não podem ser universalizadas. Alguns teólogos católicos, seguindo o Vaticano II, usaram uma palavra italiana para falar sobre isso: aggiornamento, que se referia a uma adaptação, uma nova apresentação dos princípios católicos ao mundo atual. Os protestantes, ligados à missão integral falaram mais de contextualização, da consideração da cultura, do contexto sócio-histórico-cultural na interpretação bíblica e na vivência e propagação do evangelho. Tanto a TL como a Teologia da Missão Integral, como nos lembrou René Padilla ontem à noite, se afirmaram como teologias inacabadas, em construção contínua. E não poderia ser diferente, pois essas teologias afirmam sua contextualidade, não tendo pretensão universal. Aqui, erram mais uma vez os que se precipitam em declarar a morte da teologia da libertação, pois ao analisá-la como se ela fosse um corpo dogmático, fechado, completo, abordam seus temas clássicos, sem perceber os desenvolvimentos posteriores, suas transformações e multiplicações, inclusive sob formas já não identificadas como sendo Teologia da Libertação.


Sendo assim, congressos e encontros como esse são muito importantes para o desenvolvimento dessas teologias contextuais. Se entendemos a necessidade e a realidade da transformação inerente ao nosso teologar, precisamos nos dar conta do que está se passando. Esse é o papel da linguagem teológica: ler e interpretar o livro da vida, como nos lembra Carlos Mesters. Ganharemos mais aqui se nos desarmarmos e pararmos para ouvir com mais atenção uns aos outros. Esse não é um encontro da academia. Esse é um encontro da igreja. Todos os teólogos e teólogas aqui tem jornada dupla de trabalho, mesmo os que ensinam nas universidades e nos seminários. São todos homens e mulheres engajados na realidade eclesiástica e na luta solidária pela construção do Reino, ou dos sinais do Reino de Justiça--como preferirem dizer. Diferentemente dos encontros, por exemplo, da Academia Americana de Religião, onde ouvimos teses brilhantes de professores e professoras renomados que nunca tiraram a bunda da confortável poltrona de onde enxergam e interpretam o mundo, esse encontro aqui se parece mais com uma reunião de trabalhadores e trabalhadoras que labutam em diferentes frentes no dia-a-dia, lidando com pessoas, com estruturas reais de opressão, com as contradições das realidades eclesiásticas, e que se reúnem para se retroalimentar e aprender um pouco mais com as experiências e as reflexões de seus companheiros e companheiras antes de voltar ao campo para continuar a labuta. Então, nesse ambiente, somos desafiados a ouvir com ouvidos, mentes e corações mais abertos uns aos outros. Por que nos revoltamos? Por que questionamos coisas que pareciam inquestionáveis? De onde vem nossos questionamentos? Certamente, todos vem de uma caminhada engajada, comprometida, sofrida e muitas vezes marginalizada. Essa é a forma como alguns de nós tem experimentado o ministério cristão, e é no calor dessas muitas lutas que nossas reflexões tem se forjado.


Nesse encontro, homenageamos e reverenciamos aqueles que nos precedem levantando questionamentos sobre os caminhos que aprendemos deles. A melhor homenagem que podemos prestar-lhes, e a melhor forma de mantermos vivos seus legados é levantando novas questões, em continuidade com as questões que eles levantaram.

Os primeiros teólogos da libertação expuseram a realidade da constante luta entre capital e trabalho, e da grande exploração por parte dos detentores dos meios de produção para com as multidões de trabalhadores e trabalhadoras que tinham apenas seus corpos e suas mentes para entrar numa pseudo-parceria entre trabalho e capital. Um entra com os meios de produção e o outro vende a única coisa que tem: o seu corpo, sua força braçal, e a sua mente, sua força intelectual, ambos por um preço ditado por quem tem mais força. Os primeiros teólogos da libertação  usaram uma ferramenta de análise social marxista. Ela pode ter falhado nas suas proposições de alternativas. Mas sua crítica aguda à natureza do modelo do capitalismo moderno continua não respondida. Os primeiros teólogos da libertação leram a Bíblia e descobriram um Deus que se opõe a toda forma de injustiça e opressão. Um Deus que se identificou com escravos, com pobres, viúvas, órfãos, estrangeiros e cuja revelação mais plena se deu na figura de um homem que foi condenado à pena capital como um criminoso pelo império romano, com apoio ou conivência das organizações religiosas da época. A partir da leitura da sua propria realidade, leram a Bíblia e a partir da leitura da Bíblia leram a sua realidade, com os olhares e as limitações próprias da época.


Muitos à época não tinham se dado conta dos desdobramentos naturais daquela forma de pensar e não atentaram para questões que se tornariam tão comuns em nossos dias, como as questões de gênero apresentadas de forma tão brilhante na mesa de ontem pela manhã. Foi na esteira daquelas primeiras reflexões teológicas na América Latina que vieram também a teologia negra latino-americana, as teologias de gênero, as discussões eco-teológicas, a questão da religiosidade popular, do pluralismo religioso, e outras tantas que não temos ainda capacidade de enxergar e que se manifestarão futuramente. Além do mais, até hoje muitos teólogos e teólogas da libertação não foram capazes de enxergar o rebuliço que vem acontecendo no seio da igreja evangélica no campo da ação social, inclusive em ambientes pentecostais, como sendo resultados, diretos ou não, do labor inicial da TL. Assim, o que o penso é que a teologia da libertação continua em construção, usado novas ferramentas, para além das usadas pelos que já podemos chamar de teólogos clássicos da libertação, e tomando novas formas, algumas das quais não antecipadas por eles.



 Por varias razoes que nao vou discutir aqui, estou localizado dentro do setor evangélico da igreja brasileira identificado com a idéia da missão integral. Ela, como disse mais cedo, foi minha via de escape do fundamentalismo, e me ofereceu uma nova forma de ver o evangelho e o mundo. Por isso, sinto-me mais a vontade para tentar contribuir com a teologia da missão integral, através do levantamento de algumas questões.


Numa conversa com o Orivaldo Jr., falávamos sobre a necessidade de formarmos uma coalizão entre as alas representantes de um cristianismo mais progressista no Brasil, sob o risco de acabarmos engolidos ou massacrados pelas tropas de choque do fundamentalismo, ainda tão vigente. Acho que é isso que estamos propondo nesse congresso, ao colocarmos representantes da missão integral da igreja, da teologia da libertação e do movimento ecumênico, conciliar em diálogo. Penso que temos muito mais coisas em comum do que imaginamos. Temos algumas prioridades semelhantes. Essas diferentes abordagens teológicas, por exemplo, vêm a questão da justiça como essencial ao Evangelho de Jesus Cristo. Todas essas correntes devem mais umas às outras historicamente do que reconhecem. O movimento ecumênico deve muito ao movimento missionário protestante. A teologia da libertação deve muito, como foi dito ontem à noite pelo René Padilla, ao movimento protestante ecumênico na América Latina. E a Teologia da Missão Integral deve muito mais do que admite tanto ao protestantismo ecumênico como à teologia da libertação. A teologia da missão integral surgiu no fim da década de sessenta na América Latina como uma resposta dos setores conservadores da igreja evangélica latino-americana que não se identificavam com o fundamentalismo dominante no seio de várias dessas igrejas evangélicas às ações e provocações trazidas tanto pelo movimento igreja e sociedade, parte do ecumenismo protestante latino-americano, como pela teologia da libertação. Sem essas provocações tal resposta não teria existido, ao menos na forma em que surgiu. Mesmo partindo de um pequeno grupo de teólogos evangélicos, o movimento não é uniforme, havendo dentro da própria gênese da teologia da missão integral uma ala mais conservadora, mais alinhada ao evangelicalismo norte-americano, e uma ala mais progressista. Tendo nascido na América Latina, a teologia da missão integral ganhou visibilidade internacional por causa do Congresso de Lausanne, apoiado pela fundação Billy Graham. Mas, ao meu ver, as linhas orientadoras desse congresso eram mais conservadoras do que a teologia da missão integral que surgia na América Latina.


No que ha de melhor nele, o Pacto de Lausanne reflete as falas desses teólogos latino-americanos com sua preocupação com a responsabilidade social da igreja. Mas, por sua visão estreita do sentido de evangelização, Lausanne afirma uma dicotomia entre evangelização e responsabilidade social da igreja, priorizando a primeira. Só que, mesmo diante dessa incursão tímida no campo da responsabilidade social, houve importantes desdobramentos históricos, como os CLADEs, os Congressos Nacionais de Evangelização no Brasil e outros encontros em diversas partes do mundo que continuaram refletindo e avançando na percepção da questão da justiça social como tema central para a compreensão do evangelho e da missão da igreja nos contextos onde estavam inseridos. Por outro lado, ao meu ver, o congresso conhecido como Lausanne II, reagiu a esses desdobramentos talvez inesperados, tendo caráter ainda mais conservador do que Lausanne I, inclusive nas suas escolhas de oradores e representantes da América Latina. Enquanto isso, especialmente nos CLADEs III e IV, surgiam os primeiros indícios de diálogo e cooperação entre a teologia da missão integral e a teologia da libertação na América Latina. E de lá para cá, muitas outras aproximações e contribuições nesse sentido tem ocorrido.

1- Sendo assim, minha primeira observação com relação à teologia da missão integral é que precisamos recontar nossa história partindo do começo, não da metade. Sem negar a importância histórica de Lausanne, não podemos evevar a declaração daquele congresso dando-lhe carater final, ou validade universal e a-histórica. Isso negaria a nossa própria essência.

2. Sugiro ainda que precisamos repensar nosso conceito de missão integral superando a dicotomia evangelização e responsabilidade social presente no Pacto de Lausanne.

3. Outra dicotomia a ser superada é aquela entre leitura da realidade e leitura da Bíblia. Gosto do que Frei. Carlos Mesters diz sobre isso:
“Interpretar a Bíblia sem olhar a realidade da vida do povo de ontem e de hoje é o mesmo que manter o sal fora da comida, a semente fora da terra, a luz debaixo da mesa. Por que a realidade da vida é tão importante para a gente poder entender a Bíblia? É porque a Bíblia não é o primeiro livro que Deus escreveu para nós, nem o mais importante. O primeiro livro é a natureza, criada pela Palavra de Deus; são os fatos, os acontecimentos, a história, tudo o que existe e acontece na vida do povo; é a realidade que nos envolve; é a vida que vivemos. Deus quer comunicar-se conosco através do livro da vida. Por meio dele Ele nos transmite sua mensagem de amor e de justiça."


Mesters entao mostra que por causa do pecado não podemos perceber claramente o apelo de Deus que existe dentro da vida que vivemos. Entao, Deus escreve o segundo livro, que é a Bíblia, que não veio substituir o primeiro, mas nos ajudar a melhor entender o sentido da vida e a perceber mais claramente a presença da palavra de Deus dentro da nossa realidade. Gosto tambem da teologia negra norte-americana, que nunca fala de Deus sem referência à humanidade, nem da humanidade sem referência a Deus. Deus e ser humano, Escrituras e vida real, tudo profundamente interligado.


3- Finalmente, penso que precisamos pensar sobre a dicotomia igreja e sociedade. Ainda vejo uma dicotomia muito grande no meio evangelico entre igreja e mundo. E penso que a missao integral pode elaborar mais essa relacao. Obviamente, um dialogo com pensadores como Richard Shaull e com a propria TL poderiam ser de grande ajuda.


Os teologos e teologas da TL, por outro lado, ganhariam em ver esse teologar que tem ocorrido por mais de 40 anos em alguns setores conservadores da igreja evangelica brasileira tambem como um desdobramento do seu labutar teologico e da sua propria transformacao. Uma maior aproximacao e dialogo entre essas duas formas de teologar na America Latina produziriam, ao meu ver, uma renovacao e ampliacao do impacto dessas teologias no contexto latino-americano.


Essas são apenas algumas provocações para que possamos continuar construindo a partir desses legados tão importantes que herdamos.

2 comentários:

  1. Raimundo , essa "tropa de choque do fundamentalismo brasileiro" que você cita em sua conversa com o Orivaldo Jr. , tem me desanimado. Na verdade amigo ,sinto-me sozinho.Uma solidão , talvez maior do que aquela que Jonas sentiu no ventre do grande peixe.Os livros têm sido minha tábua de salvação no meio da tempestade fundamentalista . Talvez por isso , no final de 2009 , afastei-me temporariamente do ministério. Uma espécie de ano sabático.Estou refletindo e pensando a melhor maneira de servir ao Reino de Deus
    Que Deus ajude-me nesse deserto.

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  2. André, posso me identificar bastante com esse sentimento que expressa. Só que tenho tido a graça de conhecer tantos outros vivenciando isso que posso garantir que você não está só. Aproveite o sabático, reflita, respire fundo, e vamos adiante. Sem dúvida, há muitas formas de se servir ao Reino. Mas acho que a igreja/o ministério pastoral perde muito se deixar de contar com gente como você.

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